Crítica | Joker (2019)


“Joker” é um grande trabalho, muito para lá de um filme de super-heróis, um filme para reflectir e discutir, memorável pela interpretação incível de Joaquin Phoenix, que coloca o espectador numa posição quase incómoda e tenebrosa à medida que assistimos de forma impune a um ódio crescente.
- De: Todd Phillips
- Com: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz
- 2h2min
A ambição do projecto de Todd Phillips é notável, um estudo sobre uma personagem icónica de um universo de super-heróis, a origem do vilão mais mediático da DC comics. O estudo de Phillips consiste num retrato detalhado da mente de Arthur Fleck, um homem com um distúrbio mental que se vê renegado pela sociedade no seu dia-a-dia, e cujo ódio pelo sistema o leva a assumir a personalidade do mítico Joker, o vilão de Batman. O mais fascinante de “Joker” é a forma poderosa como nos desafia a desenvolver simpatia pelo vilão, a perceber as suas motivações e a colocar-nos do seu lado quando a sociedade lhe nega a dignidade, ao mesmo tempo que nos mostra como o ódio e a loucura crescem. O sentimento de revolta de Fleck, o ódio incandescente que cresce à custa do mundo capitalista e insensível em que vive, é o resultado de um trabalho muito interessante no que diz respeito ao desenvolvimento da personagem. Até hoje, o mítico vilão de Batman, teve os seus altos e baixos com interpretações soberbas de grandes nomes da indústria, com destaque para Jack Nicholson e Heath Ledger… Sempre foi o vilão cruel, doido e incendiário que representa o espírito de revolta e de ódio da cidade de Gotham, e toda esta escuridão e crueldade que o acompanham é equilibrada com o espírito de justiça e de esperança trazido pelo homem morcego. Sempre foi uma rivalidade icónica do cinema, pelo que aqui, no retrato de Phillips, é mais difícil encontrar este equílibrio entre o bem e o mal, o que é só por si um dos aspectos mais originais do filme.

Ainda o filme não tinha estreado em sala, e já tinhamos relatos de pessoas e protestos a aclamarem o perigo do filme em incentivar minorias revoltadas. Já muito se falou sobre o perigo que representa para as mulheres e pelo incentivo à violência. O poder e influência de Joker transcende o seu impacto e importância na cultura pop, e quando um filme atinge este estatuto há que dar mérito ao resultado final. Contudo, e tal como seria de esperar, o trabalho de Todd Phillips, apesar de retratar a origem de um vilão com um enorme detalhe e dedicação, não cultiva empatia nem simpatia pelas motivações e mentalidade perturbada do protagonista, mesmo que ofereça motivos para sentirmos pena deste. A história, que vai adquirindo contornos cada vez mais negros à medida que a loucura e o ódio de Fleck se vão manifestando com maior intensidade, oferece momentos em que vemos a crueldade da natureza humana e a humilhação sentida pelo protagonista, ao mesmo tempo que mostra como os seus problemas mentais e a vida complicada cultivam o seu ódio pessoal. Há portanto aqui um trabalho muito interessante e detalhado, que procura dar um significado à origem de Joker, sem glorificar os seus actos e a sua sede de ódio e de revolta.
O filme, visualmente belo e cativante, relembra os anos 70, não só na sua fotografia única mas também no retrato da sociedade que é ali retratada. É talvez um dos aspectos mais importantes do filme e o primeiro exemplo de que este não é um filme de super-heróis. A dedicação de Todd Phillips leva-o a homenagear o vilão de uma forma memorável e a criar um autêntico estudo de personagem, deixando apenas referências ao universo dos comics e distanciando-se destes sempre que possível. O detalhe e o impacto ao nível da fotografia é aqui mais do que estético, oferecendo profundidade a momentos poderosos e de importância elevada para o desenvolvimento do vilão. Mas é precisamente nesta vertante, na estética, que são mais evidentes as inspirações do realizador para o seu filme, como “Taxi Driver”, e onde está assente o ponto mais pobre do filme. A originalidade com que Phillips retrata Joker é um espelho de outros filmes dos anos 70, mas há certos momentos em que a inspiração é seguida demasiado à risca, o que retira algum potencial do filme.

O grande destaque de “Joker” é a interpretação soberba do actor que dá vida ao vilão, Joaquin Phoenix. Já muito se escreveu e se falou do trabalho e dedicação do actor, mas é sempre incrível ver como o protagonista do filme é trazido à vida de forma tão inspiradora e cativante. Phoenix veste a pele do vilão com um respeito e uma dedicação que transparecem ao longo do filme, na forma como este é humilhado e renegado pela sociedade, na forma como os delírios mentais vão aos poucos motivando um ódio tenebroso e sobretudo na forma como tudo parece real e humano. Aliado ao detalhe do estudo de personagem que Phillips faz de Joker, a interpretação de Phoenix é essencial para construir a personagem da forma pretendida. Em vez de se focar meramente no ódio e na violência, o filme foca-se mais nas motivações e no desenvolvimento psicológico do protagonista, na forma como a sua revolta com a sociedade afecta aqueles que o rodeiam e como as suas motivações incendeiam o espírito de Gotham. “Joker” é um grande trabalho, muito para lá de um filme de super-heróis, um filme para reflectir e discutir, memorável pela interpretação incível de Joaquin Phoenix, que coloca o espectador numa posição quase incómoda e tenebrosa à medida que assistimos de forma impune a um ódio crescente.